Caros amigos,
seguramente “Aprender a viver” foi uma das obras mais interessantes e enriquecedoras que tive o prazer de ler nos últimos anos. Trata-se de uma espécie de curso introdutório à filosofia, sem que isso resulte, de forma alguma, em um texto superficial ou simplista.
Usando uma linguagem extremamente acessível e compreensível, o filósofo francês Luc Ferry materializa o argumento de sua colega, a filósofa brasileira Viviane Mosé, a qual defende que aquele que realmente detêm conhecimento não precisa fazer uso de vocabulário difícil mas, ao contrário, esforça-se para se fazer entender mesmo ao mais leigo e humilde de seus interlocutores. Ao longo de pouco mais de 200 páginas, Ferry apresenta ao leitor um instigante panorama da história da filosofia, destacando cinco grandes marcos: o estoicismo, o cristianismo, o humanismo, a filosofia pós-moderna de Nietzsche e as possibilidades da filosofia contemporânea.
“… a irreversibilidade do curso das coisas, que é uma forma de morte no interior mesmo da vida, ameaça-nos de sempre nos arrastar para uma dimensão do tempo que corrompe a existência: a do passado, onde se instalam os grandes corruptores da felicidade que são a nostalgia, o arrependimento e o remorso.”
O Estoicismo (e sua busca pelo justo lugar no seio da ordem cósmica) é apresentado pelo autor como um exemplo da antiga filosofia, a qual tem na prática do não apego e na salvação expressa por meio da reintegração ao cosmos (e, portanto, anônima e impessoal), duas de suas características mais marcantes.
Na sequência, o autor nos fala sobre como o Cristianismo suplantou a filosofia grega, ao oferecer um tipo de salvação muito mais sedutor, por meio de uma cobiçada imortalidade pessoal. Para alcançá-la, é preciso de ter a “humildade” de abandonar a razão em prol de uma confiança inabalável num Outro, bem como adotar o amor ao próximo como marco moral.
“Enquanto os estoicos nos apresentavam a morte como a passagem de um estado pessoal a um estado impessoal, como uma transição do estatuto de indivíduo consciente para o de fragmento cósmico inconsciente, o pensamento cristão da salvação não hesita em nos prometer categoricamente imortalidade pessoal.”
Ferry também nos fala sobre o Humanismo, considerado um marco da filosofia moderna, na medida em que desconstrói os alicerces do cristianismo e coloca o mundo em busca de novos referenciais. Neste novo contexto, cabe ao homem construir sentido em um mundo caótico.
“A nova filosofia torna tudo incerto
O elemento do fogo está completamente extinto
O sol se perdeu, e a terra; e ninguém hoje
Pode mais dizer onde encontrá-la […]
Tudo está em pedaços, toda coerência desaparecida.
Nenhuma relação justa, nada se ajusta mais.”
Versos de John Donne, 1611
O autor apresenta também as ideias da pós-modernidade filosófica, destacando o papel de Friedrich Nietzsche e sua agressiva filosofia de desconstrução, a qual, entre outras coisas, atacou com firmeza os conceitos de humanismo e nacionalismo oriundos da filosofia moderna. Sua crítica aos ideais e à transcendência é aguda e implacável, tão instigante quanto sua proposta de eterno retorno.
“Se, em tudo o que você quer fazer, começar perguntando: ‘Tenho certeza de que desejo fazê-lo infinitas vezes?’, isso se tornará o centro de gravidade mais sólido para você… Eis o ensinamento de minha doutrina: ‘Viva de forma a ter de desejar reviver – é o dever -, pois, em todo caso, você reviverá! Aquele para quem o esforço é a alegria suprema, que se esforce! Aquele que ama antes de tudo o repouso, que repouse! Aquele que ama antes de tudo se submeter, obedecer e seguir, que obedeça! Mas que saiba para o que dirige sua preferência, e não recue diante de nenhum meio! É a eternidade que está em jogo!’ Essa doutrina é suave para aqueles que nela não têm fé. Ela não tem nem inferno nem ameaças. Aquele que não tem fé não sentirá em si senão uma vida fugidia.”
Friedrich Nietzsche
Por fim, Ferry nos apresenta a filosofia contemporânea e seu profundo desafio de busca por um caminho depois da aguda desconstrução promovida por sua antecessora pós-moderna. O impacto das questões apresentadas por Nietzsche não são passíveis de descarte ou esquecimento. Neste contexto, o pensamento filosófico contemporâneo percebe-se em uma encruzilhada entre tornar-se uma “disciplina técnica” nas universidades ou dedicar-se a pensar o humanismo pós desconstrução. Neste contexto, há um repensar da transcendência e da salvação à luz de um humanismo secularizado.
“…essa sabedoria do amor deve ser elaborada por cada um de nós e, sobretudo, em silêncio. Mas acredito que devemos, à margem do budismo e do cristianismo, aprender, enfim, a viver e a amar como adultos, pensando, se necessário, todos os dias na morte. Não por fascinação mórbida. Ao contrário, para procurar o que convém fazer aqui e agora, na alegria, com aqueles que amamos e que vamos perder, a menos que eles nos percam antes. Estou certo de que, embora eu esteja infinitamente longe de possuí-la essa sabedoria existe e constitui o coroamento de um humanismo, enfim desembaraçado das ilusões da metafísica e da religião.”
Luc Ferry nos brinda com uma obra riquíssima e acessível, que nos permite avançar um pouco mais no conhecimento do fascinante universo da filosofia e seus instigantes pensamentos e reflexões fundamentais à compreensão da humanidade.
Grande e fraterno abraço,
Marcelo Mello